«Apesar de ter apenas onze anos, recordo-me bem do dia 25 de Abril de 1974, «inicial inteiro e limpo, onde emergimos da noite e do silêncio», como tão bem retratou, a nossa Sophia de Melo Breyner Andresen.
Como vivia nas Caldas da Rainha, uma cidade de província notoriamente conservadora, não se sentiram grandes ecos revolucionários, pelo menos até ao fim da tarde.
Penso mesmo que a cidade viveu este dia de uma forma apreensiva, até porque um mês e alguns dias antes, os militares do RI 5 tinham saído do Quartel em direcção a Lisboa, para participar numa outra Revolução, que tinha entretanto sido adiada...
A censura tentou, e conseguiu, que o 16 de Março fosse tratado de uma forma ligeira, sem merecer grande destaque nos jornais, na rádio e televisão. O saldo desta tentativa de revolta, saldou-se pela prisão e destacamento dos militares envolvidos, para evitar males maiores.
Como é óbvio, a Cidade teve conhecimento do caso, embora a maior parte das pessoas não soubessem ao certo o que tinha acontecido. Não me lembro de ter sido tema de conversa em casa. Como eu e o meu irmão ainda éramos menores, os meus pais não falavam destas coisas à nossa frente. Mas na Escola Preparatória Rafael Bordalo Pinheiro, onde estudava, esta rebelião foi bastante falada, e até ficcionada, pela imaginação fértil das crianças de onze e doze anos, que nutrem um fascínio especial por histórias de “guerra”, entre os bons e os maus.
Um dos meus melhores amigos, filho de um militante do PCP, facto que desconhecia na época, contou-me, quase como se fosse um segredo de estado, que o pai tinha estado nesse dia com alguns amigos, a observar à distância as movimentações dentro e fora do Quartel. Munido de binóculos assistiu à saída e entrada de viaturas militares, assim como das forças da autoridade.
Felizmente, quarenta dias depois, a Revolução saiu mesmo à rua.
Militares vindos de várias regiões do país invadiram a Capital e ocuparam os lugares estratégicos da cidade. As dúvidas iniciais dos “Capitães de Abril” transformaram-se em certezas, graças ao apoio popular de milhares de pessoas, que surgiram de todos os lados, de uma forma completamente expontânea, para dar vivas à Revolução e à Liberdade.
Enquanto a multidão invadia a baixa e deixava o Largo do Chiado em estado de sitio, eu brincava no quintal da minha casa, satisfeito pelo “feriado” escolar inesperado. Assistia serenamente à troca de informações entre a mãe e uma vizinha, que não tiravam os ouvidos do rádio, que dava conta dos últimos desenvolvimentos (nessa altura já tínhamos televisão, mas as emissões deviam ter sido interrompidas, pois só me recordo da transmissão das notícias radiofónicas...) da Revolução.
O ponto alto desse dia acabou por ser a rendição de Marcelo Caetano e de todo o governo. Era o sinal mais da vitória dos Militares de Abril.
A minha mãe ficou bastante dividida nesse final de tarde, porque era uma das muitas espectadoras atentas às “Conversas em Família” do Marcelo Caetano, por quem tinha uma grande admiração, considerando-o um bom governante e um homem sério.
O meu pai, de espírito mais libertário, ficou bastante satisfeito com este desfecho. Acreditou firmemente na possibilidade de Portugal se tornar um país mais justo, tal como milhões de portugueses...
Uma das coisas que mais o chocava eram os constantes abusos de autoridade, praticados por quem detinha qualquer poder. Qualquer soldadeco da GNR ou agente de terceira da PSP, procedia como se fosse dono deste, ou de qualquer outro mundo. O pai tratava-os por “pançudos” e realmente, nessa época, eles eram todos bem anafados...
Como devem calcular, mais chocado ficava, quando sabia que alguém tinha sido preso ou interrogado, pelo simples facto de defender um Portugal mais livre e democrático.
Acabo como comecei, com as palavras de Sophia. Tenho algumas dúvidas que «esta é a madrugada que eu esperava», porque trinta e três anos não foram suficientes para nos termos tornado um país mais justo e igualitário. Claro que «livres habitamos a substância do tempo»... e a Liberdade continua a ser a herança mais preciosa da Revolução de Abril.»
Esta é a minha crónica, que consta no livro "25 Olhares de Abril", coordenado por Carlos Garrido (apresentado no próximo dia 29 de Abril, na livraria "CIrculo de Letras", em Lisboa), que me pediu para lhe contar como tinha sido o meu 25 de Abril, em 1974. Claro que é um olhar sem profundidade e sem mágoa, de alguém com onze anos, que pouco ou nada sentiu, os reflexos do salazarismo ou marcelismo. Limitou-se a ouvir falar. Mas o dia, foi assim...
12 comentários:
É uma memória bonita a que tens do dia em que conquistámos a Liberdade.
Como imaginas a minha é completamente diferente.... foi ansiosamente sofrida e intensamente vivida...
Beijinho, Luís
Uma crónica muito bem tecida, entre a acção nas ruas de Lisboa, a calma da tua cidade, a confusão no Largo do Chiado e as brincadeiras no teu quintal...
Beijos*
Uma história muito bonita, esta que nos contaste, a do teu 25 de Abril. E sempre muito bem escrita. A minha é diferente porque sou mais velha, alguns anos.
Deixo-te um cravo de Abril, porque todos os dias passaram a ser dias de liberdade com aroma de mais justiça, trabalho, pão...
Deixo-te um beijinho grande de amizade. É com muito gosto que te visito Luís.
Claro, Maria, viveste intensamente, cada momento...
Também gostava de ter mais meia-dúzia de anos, para ter vivido todo este período com mais intensidade...
a crónica do meu dia, M. Maria Maio...
Sabes que mais? A minha mãe disse-me que eu me lembrava melhor deste dia que ela...
obrigado pelo cravo e pela tua amizade, Sophiamar...
E a obra própriamente dita é lançada amanhã em Lisboa na "Campo de Letras".
Os meus parabéns ao Luis!
Obrigado Higino.
Gostei muito da tua primeira revolução.
Beijinho
foi assim, Alice...
A história também se re-escreve a partir da memória, lugar em que as emoções, os desejos e os sonhos, nunca terminam.
Parabéns, bela e significativa crônica!
Gostei de ler. Obrigado por partilhar.
bjs
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