Já tenho pensado várias vezes quer nasci tarde demais.
Queria ter pelo menos uns dezasseis anos quando se deu a Revolução de Abril. O mais curioso é que essa idade também me dava jeito em 1977, para assistir aos "IV Encontros Internacionais de Arte", que se realizaram nas Caldas da Rainha.
Nessa altura tinha apenas catorze anos e não me ficou qualquer registo do acontecimento.
Ao ler a "Colóquio Artes" de Outubro de 1977, fiquei pasmo com as palavras de Eurico Gonçalves, que escreveu a reportagem sobre o acontecimento com centenas de artistas nacionais e estrangeiros: [...]«Estes encontros visam, através de uma convivência necessária entre os artistas e as populações locais, uma confrontação de atitudes, ideias e opiniões, a sensibilização à linguagem dita artística»[...].
Parece que a mensagem não foi muito bem compreendida pelos caldenses, pois na reportagem ainda se pode ler: [...]«O Grupo Acre, constituído pela escultura Clara Menéres e pelo pintor Lima de Carvalho, depois de muitas horas de trabalho não remunerado, viu destruída à picareta uma escultura que quis erguer no Mercado do Peixe, em alusão ao 16 de Março de 1974, data em que um movimento militar das Caldas tentou fazer o que só foi possível um mês depois, em 25 de Abril do mesmo ano, o derrube do regime fascista em Portugal. Volvidos três anos e meio, a reacção ainda lá está e não só não permitiu tal tipo de evocação, como perseguiu à paulada alguns artistas participantes nestes Encontros e destruiu muitos objectos e símbolos de uma intensa actividade desenvolvida durante doze dias, evidenciando total desrespeito pelo trabalho não remunerado dos artistas»[...].
Não fazia ideia da coisa, nem desta "reacção", completamente conservadora, para não lhe chamar outro nome...
8 comentários:
Eu lembro-me disso, até andaram umas francesas nuinhas pela cidade.
Que escandaleira que foi. Até se organizaram piquetes para correr com a "pouca vergonha".
Se esta gente das Caldas ainda tem vistas curtas com a Arte, imagine há mais de trinta anos.
Não fazia ideia deste acontecimento.
Deve ter sido um espectáculo!
pois, deve ter sido um momento curioso, no minimo, Zé.
já somos dois...
Olá Luis
Recordo-me deste acontecimento.O facto de não ter sido bem recebido pelos caldenses, deveu-se ao facto de estarmos a despertar ainda para o mundo moderno..Existia nas Caldas o aspectro do comunismo..A destruição na praça do peixe da "obra de arte" deveu-se ao facto do povo se vêr privado do seu espaço habitual da venda do peixe....Nazarenas e penicheiras não são mulheres de braços caídos e daí a picareta...até entendo.Mas..depois de tantos anos, caímos na apatia...existem tantas "obras de arte" espalhadas nas rotundas que ninguém sabe o que são nem para que servem e concerteza que muitos já se lembraram da picareta....agora já ninguém liga aos encontros de arte...o povo está preocupado com outras coisas mais importantes..a arte para o povo não é a mesma que para um grupo restrito e intelectual.Naquele tempo foi colocar o dedo num vespeiro.
Um abraço
Vitor Pires
olá Vitor.
sim, deve ter sido uma "verdadeira" revolução, este acontecimento numa cidade pequena, ainda pouco desperta para as artes...
Caro Luís Eme, caro Vitor Pires, encontrei o blog e a vossa conversa por acaso. Estou actualmente a constituir um arquivo de documentos (fotos, artigos, cartazes, fliers, filmes?...) sobre os Encontros Internacionais de Arte de Caldas da Rainha de 1977. O meu objectivo é de editar uma publicação para 2015 com uma pequena editora independente (www.ghost.pt). Gostaria de encontrar pessoas que têm documentos e estão disponiveís para partilhar o seu material. Deixo aqui o meu contacto: david.gueniot@gmail.com
David-Alexandre Guéniot
Há um filme do Truffaut, salvo erro, onde queimam livros por desporto. Ou será um livro do Ray Bradbury onde queimam filmes. Estou a ponderar fazer um zine do Zé Povinho a partir blogues!
Olá Anónimo Caldense. Falo como anónimo, assim ficamos de igual para igual. Essa do mundo moderno, metam lá um despertador. Modernices e vanguardas foi no inicio do século. O partido comunista caldense esteve claramente contra este evento. A piada é que muitos dos artistas que lá participaram eram comunistas. O povo não foi afastado do seu local de trabalho, que aliás são espaços públicos ao ar livre. Os artistas só intervinham posto o encerramento da feira. As penicheiras e as nazarenas são sem dúvida violentas, ao contrário das mulheres artistas que para além de não serem machistas, eram claramente feministas e falavam sobre a condição da mulher. Mas como disse e bem, o despertador ainda nem para o modernismo tinha tocado, quanto mais para o pós-modernismo. O pior é que ainda não tocou. Quando diz que muitos se relembram da picareta, ora bem... não devem mesmo saber para que serve o raio da arte. Por outro lado, incita-me uma certa raiva porque um grupo restrito e intelectual de pessoas criadoras não serve para nada se não para levar com picaretas dos machos parolos e das femeas desemancipadas, mas um comerciante conservador por exemplo, para alem de servir para votar em opressores e ladrões (do tipo costa*, coelho, cristas), ainda serve para vender, e para bater (sobretudo nos filhos e nas filhas, nas mulheres, mas agora nova moda, nos artistas) - sabe meu caro anónimo, apetece-me chegar ao mercado do peixe e da fruta com uma picareta e começar a destruir bancas de comércio (essas que servem para tanta coisa, ao contrário das obras de arte). O povo está preocupado com coisas tipo Teresa Guilherme, benfica, salvador sobral, escandalos na cmtv, terrorismo fabricado, camaras de vigilancia, papa francisco, etc e tal - e nunca esteve realmente preocupado com arte. Aliás, o povo recusa preocupar-se com arte. A arte só tem que ser bonita e consensual - ponto final, diz o povo. De facto, o povo caldense teve e tem um oasis a que não soube, nem nunca saberá, dar o devido valor. É pena. O povo quer fazer justiça com as suas próprias mãos, o que significa que terá de no futuro também fazer arte com as suas próprias mãos (sim mãos, porque com a sua cabeça será dificil) Ou então, façam lá o museu da picareta e convindem as nazarenas para vender peixe. É algo que a arte mantem em comum com elas, infelizmente, as feiras. Nota: para aqueles que sabem do que escrevo - esta arte nem sequer se equipara à arte comercial, apesar de até o corpo se ter vendido então, estamos perante um momento único no mundo em que a criação de situações em espaços públicos aconteceu. Respeito imenso todos os Caldenses que souberam participar neste certame, que o compreenderam, que não se levam mais a sério que sei lá o quê, que não escarafucham nem a arte nem os artistas por serem pássaros livres e no fundo apenas esses Caldenses mereceram e continuarão a merecer este tipo de tratamento cultural de alto nivel, porque sobre os que ficaram parados no tempo à espera do despertador não tenho absolutamente nada a dizer se não aquilo que já disse: façam lá o museu da picareta e vejam muita T.V.(i). [Parabens Luis Éme, o seu fascínio por este evento é para além de legítimo, fascinante. É dos poucos a reconhecer a importância da coisa, isso tem valor. A luta de classes faz-se dia-a-dia na luta contra a ignorancia, e essa ignorancia reside mais no povo pequeno burguês armado em patrão de machado na mão e no povo estúpido que não quer deixar de ser estúpido, do que no povo que é novo e nem idade teve para dar o valor à coisa, o devido valor! Abraços (*costa, i.e., fernando costa, "dá-me um copo de vinho", esse sim é do povo, o outro é da India [não levem a mal, ora aqui está uma piada popular com a 4ªclasse feita])
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